VAMOS AO JATOBÁ?


Quando eu era criança, passávamos as férias de janeiro em Jatobá - vilarejo onde meus avós moravam. Lembro bem da viagem que a gente dava pra ir e voltar.  E confesso que não sei ao certo se é uma lembrança boa ou ruim.
Para ir, acordávamos bem cedo. Júnior sempre dava aquele show na madrugada. Pegávamos o ônibus das 5h da manhã que ia pra Fortaleza, descíamos em Trairi e tomávamos o ônibus que ia pra Itapipoca. Em Itapipoca minha mãe fazia compras. Ela comprava uns pacotes grandes de balas de diversos sabores e sempre abria um na viagem.
Depois íamos procurar o carro do Ita que era um lindo e confortável pau de arara. Bem, se sabes o que é um pau de arara, sabes que estou sendo irônica. Eu sempre quis saber de onde vinha esse nome, mas quando tento questionar-me sobre isso, tenho preferência por esquecer.
O Ita esperava todo mundo chegar para partir e às vezes ele tinha que ir atrás da pessoa. No carro iam sacos de grãos, farinha, ração... bode, galinha, material de construção... ah é, e GENTE. 
Era uma viagem longa, se não me engano, umas 5 horas ou mais (ou podia ser impressão minha também). O carro pulava mais que cavalo chucro e às vezes eu vomitava e desejava morrer. Minha mãe ficava empurrando bala e água na gente e ficava falando coisas como:
"Quando a gente chegar, vamos ver se tem castanha pra gente assar"
"O açude deve estar sangrando de tão cheio. Pensa aí nos banhos que a gente vai tomar."
"A mãe deve ter feito beiju e café, mas vamos almoçar galinha caipira primeiro."
"Já consigo até sentir o gostinho de siriguela."
"Tá, chegando, tá bom?!"...
Não, não estava chegando, mas eu ficava imaginando todas aquelas coisas olhando pro mato - que era a única coisa que tinha na estrada de terra - e de certa forma, eu esquecia da dor da viagem.
Praticamente éramos os últimos a descer do carro. Andávamos um bom pedaço porque o carro não ia até à casa. De longe eu via o brilho do suor no rosto preto do meu avô que permanecia hirto ao lado de um cavalo magro e um jumentinho que ele cuidava com zelo. Eu corria para dar um abraço no velho e lhe pedir a bênção. Ele retribuía com os olhos marejados e um abraço intenso de um ano de saudade.
O chão parecia brasa e queimava sem dó. O vô colocava o Júnior no cavalo ou no jumento junto com as imensas bolsas de roupas que íamos usar e as que não nos serviam mais e levávamos para as crianças da vila. Sabe Deus quando tiveram a oportunidade de usar algo realmente novo, mas sempre recebiam as doações fazendo festa.
Meus avós criavam minhas primas... quatro meninas abandonadas pelos pais. E elas também eram muito necessitadas, tanto que acreditavam que a gente era rico. Não chegávamos nem perto disso.
E então, eu avistava a imagem magra e clara da vó na frente da casa, junto às meninas formando uma bela escada humana. Que sorriso elas abriam ao nos ver! Elas corriam ao nosso encontro e abraçavam tão gostoso que eu nem me incomodava por estarmos suadas e com o cheiro de sol que carregávamos. Por último abraçava com enorme paixão a minha avó que já nos carregava para dentro da velha casa simples do sertão.
A casa cheirava a fogão de lenha. E de fato ele estava lá, na ativa, mantendo nosso almoço quentinho. No quintal tinha cajueiro a perder de vista e logo atrás goiabeiras, mangueiras, sirigueleiras... e no fim do terreno, o nosso pedaço e açude com uma água tão fresquinha que me fazia pensar que estava sonhando.
Lá passávamos quase o mês inteiro. Eram dias mágicos. Tinha comida fresca todo dia e eu passava o dia brincando com as meninas - às vezes brigávamos, mas logo estávamos juntas de novo porque elas me bajulavam e eu amava isso, 
Esqueci de dizer que no Jatobá não tinha energia e quer saber? Essa era a melhor parte. Nos dávamos muito bem com as lamparinas. À noite íamos pra frente da casa admirar a lua que mais parecia um enorme queijo frescal super iluminado. Sim, as fases nova e cheia são as que mais guardo na memória.
De repente, meu avô começava a soltar uns contos medonhos de assombração que segundo ele, era tudo verídico. A vó ainda confirmava tudo, que era pior porque ela nunca mentia. Nem Poe superava o vô quando se tratava de histórias de terror. Às vezes ainda jogávamos um pouco de baralho, mas quando o medo era muito grande a sequência era o fundo da rede mesmo.
Acordava com o canto doce do galo campina que vivia livre na caatinga. Tomava café e repetia todo o dia anterior, a menos que meu avô inventasse de matar um porco. Aí começava a chegar gente de toda parte apertando minhas bochechas e falando de um jeito engraçado como se eu já não fosse quase uma mocinha. Ia todo mundo pra debaixo do cajueiro. Os homens bebiam litros e litros de pinga com limão, inclusive (principalmente) meu pai. E as mulheres conversavam na cozinha ou iam pro açude com as crianças. Quando o bicho era bode/cabra, ficava aquele cheiro enjoado no quintal. Meu avô pendurava o bicho no galho grosso do cajueiro e ia tirando a pele - uma das coisas mais nojentas e horríveis que eu já vi na vida e eu preferia não ver pra não ficar com fome. Depois tirava os miúdos e entregava pra vó lavar a preparar. As tripas ficavam muito boas quando bem torradinhas, mas os homens comiam tudo  de tira-gosto. Se meu pai tivesse na roda eu ia lá e pegava um pouco, senão, eu só ficava de longe, esgurejando que nem cachorro.
Eram dias mágicos de extrema e genuína liberdade. Enquanto caminhava em direção ao açude, desviando das raízes altas e dos galhos finos da vegetação, meu avô ia cantarolando e conversando comigo, numa expressão de profunda alegria.
"Se eu fosse um passarinho, queria ser um corrupião. Amarelo é minha cor favorita." - ele dizia, olhando para o alto procurando algo.

Bem, eu fui crescendo, perdi a inocência sobre toda aquela vida, meus pais começaram a trabalhar mais e as coisas ficaram cada vez mais difíceis... paramos de ir lá. Então o vô ficou doente.
O velho casal mudou-se para perto da gente, mas não era a mesma coisa. Não eram as férias, não eram as brincadeiras, a sensação de roubar comida da cozinha da velha casa de taipa... Era aquele lugar. Era aquele chão vivo que parecia ter saído de um folheto de cordel fantástico. Aquele lugar me fazia sentir todas as emoções possíveis em um só dia. Tanto que o meu avô não parecia mais ser o vô Zé longe de lá.
O vô morreu alguns poucos anos depois de sair de sua terra. Minha vó mudou pra capital porque também ficou doente. Ela não cozinha mais, não deixa mais as panelas brilhando, não conta mais suas histórias, não tem disposição, apetite...
Sinto que o vô carregou o Jatobá na mudança e ao morrer não desapegou. O Jatobá morreu com o vô Zé e minha vó talvez tenha ido naquele dia também.




Em memória do velho mais incrível que meus olhos já fotografaram. Agora um corrupião que meus olhos distraídos procuram.

Comentários

  1. Pelo amor, Ana...
    Sei que não cheguei a sentir a emoção que foi a você em escrever isso, mas eu tô aqui, por dentro, em prantos lembrando do que vivi na minha infância no Sítio onde meu avô morava, do tempo que era vivo. Foram dois Sítios que me trazem lembranças, que eu peço ao tempo que nunca me deixe faltar para quão longe eu vá nessa vida.
    Obrigada, Ana... por esse post maravilhoso!
    Beijo. :*

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  2. nossa, viajei lembrando de minha infância aqui na roça. muito lindo sua escrita, suas memórias! Parabéns!

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